Eisner começou a carreira ainda jovem: já na adolescência, começou a trabalhar como cartunista e ilustrador de ficção pulp para ajudar a renda da família – de imigrantes pobres judeus, que a Grande Depressão ajudou a afundar financeiramente – e ainda arrumava tempo para contribuir com o jornal do colégio (onde estudou com Bob Kane).
Em sociedade com o ex-cliente Jerry Iger, Eisner fundou o estúdio Eisner & Iger, que sobrevivia produzindo histórias em quadrinhos sob encomenda de editoras que não tinham o que publicar. O estúdio rendeu a Eisner muito dinheiro – a ponto de ter que contratar assistentes que se tornariam lendários por conta própria, como Jack Kirby, Wally Wood, Lou Fine, Jules Feiffer e o mesmo Bob Kane –, mas também problemas: o personagem Wonder Man, encomendado para ser uma cópia descarada do Superman, lhe rendeu um processo da DC.
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Outra personagem encomendado a Eisner foi Sheena (uma versão feminina do Tarzan), uma das poucas super-heroínas anteriores à Mulher-Maravilha, e que rendeu até filme e série próprios. |
Apesar de já demonstrar talento, Eisner sentia-se ansioso para voos maiores. Assim, reincidiu a sociedade com Iger para iniciar a empreitada que lhe proporcionaria projeção nacional: The Spirit, tiras de oito páginas que seriam publicadas em jornais em todo os EUA, e depois virariam revista própria. Os editores queriam um super-herói como protagonista, mas Eisner optou por um detetive que todos acreditam ter morrido.
Eisner utilizou o espaço para criar histórias autocontidas e que misturavam gêneros tão diversos quanto histórias de detetive, contos de fada, comédia, terror e crônica, apesar da característica atmosfera noir. Em muitas dessas histórias, Spirit era mero figurante, quase um easter egg. Outra decisão pouco convencional de Eisner foi tentar criar histórias que agradariam tanto os compradores de jornal quanto seus filhos – The Spirit geraria mais admiração que nostalgia às gerações futuras1.
Eisner escreveu e ilustrou histórias de Spirit em duas grandes fases: imediatamente antes e pouco depois de sua convocação à Segunda Guerra Mundial – não que histórias de Spirit não tenham saído durante sua participação na Guerra, mas Eisner teve pouco envolvimento em sua criação.
Durante a Guerra, Eisner produziu para o Exército dos EUA, além de ilustrações esporádicas, guias em quadrinhos sobre manutenção preventiva, que tiveram mais sucesso prático e de público do que qualquer outro material escrito sobre o assunto até então. Além de uma boa patente militar, essa experiência trouxe grandes impactos para a obra de Eisner: serviu para comprovar sua crença de que qualquer tipo de história, ficcional ou não, pretensiosamente ou não, poderia ser eficientemente contada em quadrinhos; além disso, o Exército continuaria sendo um dos principais clientes de Eisner pelas próximas décadas (o Exército sempre adquiria equipamentos novos, tornando obsoletos os manuais antigos).
A fase pós-Guerra de The Spirit foi uma das mais prolíficas de sua carreira: de volta ao comando das histórias do herói, Eisner estava disposto a contar histórias cada vez mais pretensiosas. Fui nessa época que ele começou a deslanchar como mestre absoluto da narrativa gráfica e da linguagem dos quadrinhos, criando layouts memoráveis.
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Um exemplo desse domínio absoluto sobre a técnica é a história 10 Minutos, que mostra os últimos dez minutos de vida de uma pessoa comum, numa história que demora dez minutos para ser lida!
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Os contratos de Eisner com o Exército o fez largar The Spirit2. Até o fim da vida, o autor continuou a produzir capas novas e fazer alterações pontuais para as reimpressões das histórias do personagem – revisões que o cronograma não permitiu fazer da primeira vez –, mas mantinha receio de produzir novas histórias do zero.
Com o boom dos quadrinhos independentes e o surgimento das primeiras comic-cons, Eisner passou a ser uma das principais caras do movimento pelo prestígio da nona arte em duas frentes: a artística e a acadêmica.
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Uma vez, Eisner adaptou o icônico monólogo de Hamlet em quadrinhos, após para provar que era possível.
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Na frente acadêmica, foi um dos pioneiros em ensinar sobre quadrinhos a nível universitário, na School of Visual Arts de Nova Iorque – ele compartilhava uma turma com o lendário cartunista Harvey Kurtzman. De suas notas de aulas, surgiu o manual Quadrinhos e Arte Sequencial, atualizado e ampliado em edições posteriores. Junto às obras de Scott McCloud, essa obra compõe os mais clássicos textos sobre a nona arte. O manual daria origem a mais duas obras complementares, uma delas lançada postumamente.
Outra fundamental contribuição sua nessa frente foram as entrevistas com cartunistas e quadrinistas consagrados, que entregavam ao leitor um panorama amplo da indústria, a partir de dentro.
Na frente artística, destacou-se pela popularização tanto da expressão "graphic novel" quando do formato que ele representa: histórias em quadrinhos mais longas, que podiam ser lidas fora de uma continuidade maior. Muitas das graphic novels de Eisner tinham como combustível a própria biografia do autor: o antissemitismo que sofreu na infância; a agitada vida da cosmopolita Nova Iorque; os primeiros anos como quadrinista; a desumanidade da guerra, que acompanhou com os próprios olhos; a amargura de perder uma filha precocemente. Na velhice, Eisner também adaptou aos quadrinhos clássicos da literatura, como Moby Dick e Dom Quixote, e a históriade Sundiata, rei semi-lendário do Mali.
O roteiro de suas graphic novels poderiam ter qualidade heterogênea: especialista em contos curtos na juventude, Eisner sempre penou para escrever histórias mais longas – via de regra, Eisner saía-se melhor em histórias mais íntimas, muito pela pressão exercida de seu editor, que queria elevar esses trabalhos ao nível da alta literatura. O mesmo não poderia ser dito de seu talento para a narrativa gráfica e o detalhe, que jamais perdeu.
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Excerto de Um Contrato com Deus, em que Eisner subverte constantemente as noções tradicionais de quadro e balão de fala. |
É por ter atuado nessas duas frentes para que os quadrinhos fossem vistos como uma arte séria que Will Eisner foi convidado em 1987 a emprestar seu nome tanto ao principal premiação da indústria dos quadrinhos quanto ao hall da fama da nona arte. Eisner fazia questão de, sempre que possível, comparecer as premiações em carne e osso, e o fez assim até seus últimos dias. Ele deixou obras belíssimas, mas seu maior legado é a lição de que ninguém deve se envergonhar por fazer ou gostar de quadrinhos.
1 Nem só de aplausos sobreviveu o legado de The Spirit. O sidekick de Spirit, o afro-americano Ebony White, tinha nome, aparência e, nas primeiras histórias, trejeitos estereotípicos racistas, mesmo para os padrões da época, apesar de ser um indivíduo provido de extraordinária inteligência e ética. Histórias em que Ebony era protagonista foram omitidas de muitas coletâneas posteriores, e o próprio Eisner se desculpou em uma obra em que compara seu retrato do personagem ao retrato de judeus em obras de autores antissemitas.
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Isso não significou a morte do personagem, que foi licenciado para outras editoras, como DC Comics e, mais recentemente, Dynamite. Autores notáveis que roteirizaram histórias do Spirit, sempre com reverência a Eisner, incluem Alan Moore, Neil Gaiman, Mark Waid e Brian Azzarello. O personagem também ganhou dois filmes pouco sucedidos, o último dirigido por Frank Miller.
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